Lunara preparava a redação pedida pela professora. Somente no Natal do ano anterior, ganhou uma máquina de escrever em Braille. Até aquela data, usara frequentemente o reglete e o punção.
Embora já tivesse uma certa prática na escrita Braille, porque há oito anos tinha familiaridade com este sistema, a menina ainda cometia muitos erros na grafia de algumas letras e pontuações. Aparentemente, o motivo disto parecia estar relacionado apenas ao pouco tempo da substituição do reglete pela máquina em função da reversibilidade, ou seja, pela mudança de posição dos pontos 1, 2 e 3 para a posição dos pontos 4, 5 e 6, e vice-versa, durante a escrita no reglete.
Enquanto Lunara pensava no tema da redação, a irmã fazia seus exercícios de matemática. Estavam tão concentradas que nem perceberam a entrada de Helena. A mãe ficou em silêncio, observando suas filhas. Então, aproximou-se de Lunara.
- O que está fazendo, Lunara?
- A redação de português que a professora pediu. Cada aluno tem de escolher uma cidade ou país e escrever porque gostaríamos de fazer esta viagem. Eu quero ir para a França, por causa do Louis Braille.
Helena olhou para o papel no qual a filha trabalhava. Como nada enxergava ali, além de pontos sem significado para ela, apenas disse: muito bem, filha, vá em frente!
Aproximou-se então de Lizandra.
- Humm... Será que o resultado desta multiplicação é mesmo este, filha?
- Acho que sim, mamãe. Mas vou fazer a conta de novo, falou Lizandra bastante desconfiada de que realmente havia feito a conta errada.
- Você também precisa caprichar mais, Liz. Seu caderno está muito riscado e desorganizado, falou a mãe repreendendo o desleixo da filha.
- E os meus papéis, mamãe, como estão? perguntou Lunara esperançosa.
- Me parecem ótimos, Lu. Para mim, não existe nada de errado.
- Mas não ficou feio onde apaguei com o dedo os pontos errados?
Helena olhava o papel mais confusa ainda. Percebia aqui e ali que o papel havia sido marcado, mas os pontos estavam salientes e isto, para ela, era suficiente, afinal de contas o braile não é uma série de pontos combinados em relevo? Helena não sabia que um ou mais pontos mal apagados podem confundir a leitura para uma pessoa cega, ainda mais quando ela não desenvolveu sua habilidade tátil totalmente.
- Talvez, Lu, seja melhor você perguntar para sua professora especializada em braille antes de entregar sua redação. Eu não entendo nada disto e posso afirmar algo errado para você.
Lunara ouvia a tudo calada e pensativa. De repente, declarou firmemente:
- Mamãe, não quero mais escrever deste jeito, não quero mais usar o braille.
- Como, minha filha? O braille é muito importante para seu estudo. É uma forma de escrita muito interessante, boa e útil.
- É tão interessante que você não sabe, que o papai não quer aprender, que meus professores desconhecem e meus colegas e irmãs não usam! desabafou Lunara, cansada por guardar este pensamento por tanto tempo.
- Mas nós escrevemos de uma outra forma porque enxergamos. Deste jeito, podemos nos comunicar e receber novas informações, notícias e tantas outras coisas mais, Lu.
- Aí é que está, mamãe. Vocês se comunicam por escrito entre vocês, mas não comigo. Vocês não sabem se eu escrevi corretamente, se eu faço meus exercícios como devem ser feitos, se está tudo organizado e nem mesmo se eu sou ou não desleixada.
- Mas minha filha, isto tudo não é dito por sua professora de braille na escola? perguntou Helena ainda impactada pelo desabafo de Lunara.
- Ela me diz algumas coisas sim, mamãe, mas ela é a minha professora e fica na escola. Eu queria ser tratada como a Liz, como as minhas amigas e como meus colegas. Que os professores na sala de aula olhassem para meus papéis e chamassem minha atenção, que principalmente a senhora ou o papai me ajudassem em casa com as lições e, se fosse preciso, me dissessem que preciso ser mais organizada, mais cuidadosa.
- Por que você não usa o computador, Lu, perguntou Liz feliz por sua brilhante ideia.
- Isto não iria resolver todos meus problemas, mana. Imagina que você me deixassem um bilhete em cima da mesa ou preso na geladeira. Como eu iria ler?
- A gente deixa no computador, ora, respondeu Liz mais prosa ainda.
- E se faltar luz, e se o computador estragar, e se o papai estiver usando o computador para seus trabalhos? ponderou Lunara.
- É mesmo... não tinha pensado nisto, respondeu Lizandra, percebendo que esta solução não era tão prática assim. Puxa, é mesmo... deve ser muito chato a gente sentir que está fora do mundo.
- Ouviu, mamãe? Até a Liz chegou nesta conclusão! Quantas vezes quero escrever um cartãozinho para vocês e preciso esperar para encontrar primeiro com minha professora e ela, então, transcrever para tinta. Quantas vezes sonhei em ganhar cds de vocês já marcados em braille com o nome do cantor e o título das músicas. Quantas vezes esperei tantas coisas com o braille assinalando que eu faço parte deste mundo, que não sou nenhuma estrangeira na minha casa, que escrevo e leio no mesmo idioma da minha família... concluiu Lunara já quase chorando.
As palavras de Lunara foram entendidas pela mãe. Helena sabia que sua filha tinha razão. Em diversas ocasiões, havia se questionado sobre a educação e a qualidade do relacionamento de Lunara com toda a família. Além disto, se perguntara muitas vezes se estava correto ou adequado transferir a responsabilidade da educação de Lunara para a professora especializada, deixando que todos se tornassem reféns de encontros semanais para que esclarecimentos ou sugestões fossem dados, como se educação e desenvolvimento não acontecessem em todos os minutos da vida.
- Você está certa, Luzinha. Precisamos urgentemente rever nosso comportamento e aprender o braille. Acho que assim vamos nos aproximar ainda mais, modificando também alguns hábitos e melhorando nossas habilidades, afirmou Helena, abraçando carinhosamente sua filha.
- Que bom, mamãe! Vou ter minha orelha puxada de vez em quando!
escrito por Sonia Hoffmann
Porto Alegre, 30 de agosto de 2009
www.diversidadeemcena.net
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